Os piores
impactos vêm da depressão, da ansiedade e dos distúrbios causados pelo uso de
drogas
Historicamente, transtornos mentais e por uso de
substâncias lícitas e ilícitas não são uma prioridade de saúde global,
especialmente quando comparados a doenças como câncer e problemas
cardiovasculares. No entanto, eles são a primeira causa, nas 187 principais
nações do planeta, a levar indivíduos a viverem com incapacidade. Apenas em
2010, foram mais de 175 milhões de anos de vida perdidos pela população mundial
em situação de impotência causados prioritariamente por depressão, uso de
drogas ilegais e esquizofrenia (em ordem decrescente de impacto). O cálculo foi
feito pelo grupo internacional de pesquisadores que compõem o Estudo Global da
Carga de Doenças (GBD), divulgado neste mês, na revista científica The Lancet.
Eles alertam para o perigo da negligência nos serviços de saúde referente ao
tratamento dessas desordens, que, em muitos países, estão até mesmo separados
dos cuidados majoritários, com mobilização de recursos incompatível com o seu
impacto global. Em 20 anos, a carga desses distúrbios na saúde global aumentou
em quase 40%. Os pesquisadores acreditam que a maioria deles foi impulsionada
pelo crescimento da população e pelo envelhecimento. O primeiro trabalho,
realizado em 1990, mostrou que os transtornos neuropsiquiátricos — que, na
época, englobavam distúrbios neurológicos, demência, uso de substâncias e
distúrbios mentais — foram responsáveis por mais de um quarto de toda a carga
não fatal.
Cinco das 10 principais causas
de incapacidade no mundo já estavam incluídas na categoria de desordem
neuropsiquiátrica. “Hoje, essas desordens são responsáveis por uma carga global
na saúde maior que a tuberculose, o HIV/Aids, o diabetes ou as lesões por
transporte”, reforça a autora do estudo, Louisa Degenhardt, do Centro de
Pesquisa Nacional em Drogas e Álcool da Faculdade de Medicina da Universidade
de South Wales, na Austrália. No total, em 2010, doenças mentais e por uso de
substância foram responsáveis por 183,9 milhões de anos de vida perdidos tanto
por morte prematura quanto por serem vividos com incapacidade, medida conhecida
na epidemiologia por DALY (sigla em inglês). O número corresponde a 7,4% de
todos os DALYs no mundo.
Desse universo, os transtornos depressivos são os grandes representantes
(40,5%), seguidos por distúrbios de ansiedade (14,6%), pelos transtornos
causados pelo uso de drogas ilícitas (10,9%), pelo uso de álcool (9,6%) e por
desordens altamente debilitantes, como a esquizofrenia (7,4%) e o distúrbio bipolar
(7,0%). Diferentemente de outros males que comprometem drasticamente a saúde e
levam ao óbito precoce, essas desordens têm um impacto maior na qualidade de
vida do indivíduo. Dos quase 200 milhões de DALYs atribuídos a elas, somente
8,6 milhões estão associados aos anos perdidos por morte prematura, o
equivalente a 232 mil fatalidades. A grande maioria deles (81,1%) está ligada a
transtornos pelo uso de substâncias.
Efeitos regionais
A quantidade de DALYs teve uma grande variação por sexo. Curiosamente, os
meninos menores de 10 anos tiveram uma proporção maior de carga do que as
meninas em idade equivalente. Essa diferença foi especialmente evidente no caso
de distúrbios de comportamento na infância, nos quais a carga dos meninos foi
mais que o dobro do impacto registrado para o outro sexo.
Degenhardt chama atenção para a variação regional dos transtornos. Os
distúrbios alimentares tiveram a maior diversidade, sendo mais de 40 vezes maior
na região da Australásia que no oeste da África Subsaariana. O uso do álcool
também variou em mais de 10 vezes entre as regiões. Ela conta que o efeito dos
conflitos regionais pode ser claramente observado em países como o Afeganistão,
o que é consistente com as análises do modelo de desordens de ansiedade e
depressão nos quais o estado de conflito possui um efeito significativo para a
prevalência dessas doenças. Apenas a China, a Coreia do Norte, o Japão e a
Nigéria produziram DALYs totais estatisticamente menores que a média global.
Terapias negligenciadas
Para Sérgio Tamai, doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP) e
membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, a disponibilidade, o acesso e a
busca por tratamento dos transtornos mentais são menores que em outras doenças.
“Sabemos que, no mundo inteiro, os sistemas de saúde, sejam privados ou
públicos, não têm capacidade de lidar com o número de pessoas que têm
transtorno mental. Isso é uma realidade.”
O texto da equipe de Degenhardt mostra que, apesar dos custos pessoais e
econômicos, as taxas de tratamento para as pessoas com transtornos mentais e
por uso de substâncias são baixos, com lacunas de tratamento de mais de 90% nos
países em desenvolvimento. Três principais razões para isso são a escassez de
recursos humanos e financeiros disponíveis, as desigualdades na distribuição
desses recursos e a ineficiência ao usá-los.
Mesmo em países desenvolvidos, o tratamento seria fornecido muitos anos após o
início da desordem. Já uma característica comum a todos os países é o estigma
sobre os transtornos mentais e o uso de substâncias. Isso seria responsável por
uma restrição do uso dos recursos disponíveis. “A combinação de estigma e
grandes lacunas de tratamento contribui para a exclusão social e as violações
dos direitos humanos básicos dos indivíduos com transtornos mentais”, afirma
Degenhardt.
Tamai acredita que o investimento nessa área também ainda é muito tímido.
“Embora seja um quadro grande de pacientes e uma causa importante de incapacitação
das pessoas para trabalhar e para viver, o investimento é muito pouco”,
lamenta.
Um estudo realizado pelo Fórum Econômico Mundial estimou que o efeito dos
transtornos mentais acumulado em termos de produção econômica perdida pode
chegar a US$ 16 trilhões nos próximos 20 anos. O valor seria equivalente a 25%
do PIB global em 2010. Os problemas associados com a carga dos transtornos
mentais e uso de substâncias são especialmente graves nos países em
desenvolvimento, que gastam menos de 2% de seus orçamentos de saúde na saúde
mental.
“Os distúrbios mentais já são conhecidos como uma das principais causas de
incapacidade desde os anos de 1990, quando o primeiro estudo foi feito. O que
eles fizeram, agora, foi ampliar a avaliação e incluir algumas desordens e
características, como o uso danoso do álcool e de outras substâncias que também
são uma grande causa de incapacitação. O uso prejudicial do álcool pode ter
vários desfechos: a doença, a intoxicação, os acidentes, e isso também pode ser
associado às drogas.”
Laura Helena Guerra Andrade, psquiatra do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP